Medeia

Esmalte. Quando era menino este era o cheiro que eu tinha das mulheres. Esmalte e outra coisa forte, que elas usavam para tirar a tinta de seus dedos. Um cheiro que purificava, tirando os outros cheiros.

 

Elas se reuniam em bandos e em bandos conversavam. Eu pequeno era um estranho. Mimado. Sempre servindo a um colo diferente. Elas me abraçavam, beliscavam minhas bochechas e o cheiro do esmalte sempre lá.

 

Medeia, uma delas, não beliscava. Só olhava. Não me dava colo. Só olhava.

 

– Ela é sempre assim distante. Clotilde a minha mãe gorda era sempre a que mais falava. Foi a primeira vez que ouvi aquela palavra e pela primeira vez percebi que o desejo não vinha do toque. Ela era como um quadro, uma realidade que existia somente nos olhos. Uma realidade distante.

 

Elas eram diferentes, mas iguais na profissão. O bando fazia sua profissão na noite. Atraia outro bando, tão diferente em suas origens quanto elas. Apesar de todas as diferenças os objetivos. O objetivo. Era único, contínuo, perpétuo.

 

Em uma destas noites, fui feito.

 

Não sabia de quem eu tinha vindo quais misturas me montaram. Seria a Ana Gorda, com o senhor careca de terno escuro? A Marília, sempre triste, com o homem de barba e cabeça redonda? Passava as noites fazendo combinações, criando famílias, imaginando irmãos. Com certeza teria irmãos.

 

Em todas as noites eu criava certezas, criava nomes, inventava pais e mães. E todas estas certezas morriam, quando o quarto se abria, as calças subiam e o dinheiro era contado.

 

– Você é meu pai?

 

– Sai fora moleque!

 

Sempre que podia, olhava no espelho, não pela vaidade, procurava decorar meu rosto, gravá-lo na minha cabeça e com esta imagem procurar semelhanças, tanto de um lado quanto do outro.

 

Estes olhos não são meus, aquela boca talvez, estes cabelos quem sabe. No fim nunca sabia.

 

Uma vez arrisquei a perguntar. Foi quando o bando se calou. Medeia levantou e saiu. Achei que este era um sinal, talvez ela. Mas os seus olhos, sua boca, pele, cabelo, nada era meu. Seria eu parecido com meu pai?

 

Comecei a cultivar uma certeza, a certeza que se construía pelo silêncio. O calado não mente pelo não dizer. E no silêncio morou minha esperança.

 

Em uma noite fraca, onde todas mais dormiam que trabalhavam, Medeia foi deitar. Aproveitando este feriado dos bandos, fui atrás. Ela subiu as escadas, corpo seminu, pernas a mostra, podia ver onde elas terminavam. Era lindo podia ter sido lá o meu lar. Não podia ter tido melhor residência no meu início de existência.

 

Ela andou até o fim do corredor. Todas as portas abertas. Nunca tinha visto todas aquelas portas abertas, não todas ao mesmo tempo. Medeia deixava no chão as marcas do salto, o chão era carpete, um cinza gasto, uma cor sem brilho, mas com muitas pegadas.

 

A porta se fechou. Seco, som abafado, discreto. Som de que não diz quando entra, nem fala quando sai. Som de sombras, de encontros que não existem além do acordo das notas contadas.

 

Fiquei parado em frente ao quarto. Meia hora, cinco minutos, não sabia. Minha mão começou a acariciar a fechadura, a maçaneta. Meus dedos correram sobre a porta, fechei os olhos, senti os relevos, a madeira um pouco gasta, farpas, minha mão dançava suave sobre a porta. Meus movimentos criaram uma brisa tão leve quanto um pensamento, uma brisa que virou as dobradiças, que moveu que falou – Entre.

 

Dentro meus pés nus roçavam o carpete. Lá o cheiro não era de esmalte. Lá as bochechas não foram apertadas. Mas o colo, lá estava o colo. Meio coberto de lençóis, meio descoberto pela lua que vinha da janela. Era branco o lençol. Era branca a pele.

 

Sentia o ar entrando pelo meu nariz, sentia o coração errando o passo engasgando em minha garganta. – É você?

 

Duas mãos me subiram à cama. Um colo me recebeu. Um seio encostou em meu rosto, o outro minha mão. Um abraço me forçou contra seu corpo. Meu abraço também existiu.

 

Não queria que acabasse, mas também não queria o silêncio. Por favor, não mate minhas certezas, não a deixe junto com as outras. É você? Desta vez só pensei.

 

A noite seguiu e virou dia.

 

A lua que descobria se foi, o lençol que cobria se foi. Medeia que era silêncio se foi. O menino, pela manhã, se foi.

 

Não havia mais espelhos. O bando ficou para trás. Andei sem deixar pegadas no carpete.

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